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Gravações secretas mostram como China e Índia sabotaram a Conferência do ClimaTobias Rapp, Christian Schwägerl e Gerald Traufetter
O que de fato aconteceu na conferência do clima da ONU em Copenhague? Gravações secretas obtidas pela “Spiegel” revelam como a China e a Índia evitaram um acordo para lutar contra a mudança climática naquela reunião crucial. Os europeus sem poderes foram obrigados a ficar de lado enquanto o acordo fracassava.
Em determinado momento, sua paciência já tinha se esgotado, tão exaurida quanto o oxigênio na pequena sala de conferências. Ele não conseguia mais ficar parado, nem mesmo por um segundo.
As palavras de repente explodiram da boca do presidente francês Nicolas Sarkozy: “Digo isso com todo o respeito e amizade”. Todos na sala, entre eles duas dúzias de chefes de Estado, sabiam que ele queria dizer exatamente o oposto do que estava dizendo. “Com todo o respeito à China”, continuou o presidente francês, falando em francês.
O Ocidente, disse Sarkozy, prometeu reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 80%. “E em troca, a China, que em breve será a maior potência econômica do mundo, diz para todos: os compromissos se aplicam a vocês, e não a nós.”
Sarkozy, fazendo uma pausa de efeito, disse então: “Isso é totalmente inaceitável!” E então o presidente francês incitou o conflito diplomático mais ainda quando disse: “Isso tudo diz respeito às coisas fundamentais, e alguém precisa reagir a essa hipocrisia!”
Um silêncio tomou conta da sala. Até os telefones celulares pararam de tocar. Isso aconteceu na sexta-feira, 18 de dezembro de 2009, por volta das 16h. Este foi o momento em que os líderes mundiais reunidos em Copenhague abandonaram seus esforços para salvar o mundo.
A cúpula dentro da cúpula
Os políticos mais poderosos do mundo estavam reunidos na sala de conferência “Arne Jacobsen” no Bella Center de Copenhague, negociando formas para proteger o clima mundial. O presidente norte-americano Barack Obama estava sentado na ponta de uma cadeira de madeira de estofado azul, conversando com a chanceler alemã Angela Merkel e o primeiro-ministro britânico Gordon Brown. O turbante azul do primeiro-ministro indiano Manmohan Singh aparecia por trás de uma série de vasos de plantas arrumados na última hora. Pouco tempo depois a reunião foi apelidada de “a mini-cúpula dos 25”.
O primeiro-ministro da Etiópia Meles Zenawi estava lá, representando o continente africano, e o presidente do México Felipe Calderon estava próximo. Apenas um importante líder mundial estava faltando, uma ausência que acabou simbolizando o fracasso da cúpula do clima: o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao.
Em vez disso, quem ocupou o lugar em frente a Obama foi o vice-ministro de Exterior da China, He Yafei. Foi uma afronta diplomática logo mencionada durante toda a duração do encontro.
Mesmo três meses depois dos eventos significativos da conferência do clima em Copenhague, o líder chinês ainda parecia sentir uma necessidade de justificar sua ausência da sala de reuniões naquela época. E os que estavam presentes ainda não foram totalmente claros sobre o que foi de fato combinado durante as negociações.
Desde a reunião de Copenhague, a política internacional do clima tem mancado como um animal mortalmente ferido – algo que também pode ser observado no encontro que está acontecendo esta semana no centro de convenções Petersberg, nos arredores de Bonn, na Alemanha.
Reconstruindo o encontro decisivo
O público foi mantido quase que totalmente desinformado em relação ao crítico encontro que aconteceu atrás de portas fechadas em Copenhague e se arrastou por dez horas. Dizem que os chineses alertaram abertamente os anfitriões dinamarqueses contra as indiscrições.
Agora, pela primeira vez, a “Spiegel” está na posição de reconstruir o decisivo encontro de uma hora e meia naquela sexta-feira fatídica. Gravações de áudio históricas, na forma de dois arquivos de áudio com um total de 1,2 gigabytes, e que foram feitas por acidente, servem como base para a análise. O protocolo de Copenhague mostra como o encontro que Gordon Brown chamou de “a conferência mais importante desde a 2ª Guerra Mundial” terminou num fracasso diplomático. Como se visto através de uma lupa, os contornos de uma nova ordem política global tornam-se visíveis, uma ordem moldada pela nova autoconfiança dos asiáticos e da falta de poder do Ocidente.
“O que estamos esperando?” Diz a chanceler Angela Merkel em inglês, esperando colocar as problemáticas negociações de volta nos trilhos. Enquanto isso, mais de outros 100 líderes mundiais, pessoas que aparentemente não tinham voz na questão, entediavam-se na sala de conferência ao lado. Eles aparentemente acreditavam, equivocadamente, como se descobriu, que a mini-reunião entre os 25 membros produziria algum tipo de documento.
Na verdade, uma sensação opressiva já havia se espalhado pelos corredores do centro de convenções. A variada coleção de ativistas ambientais já havia sido trancada para fora da conferência naquele momento, deixando apenas seus estandes abandonados na terra de ninguém dos supostos salvadores do mundo.
“Alguma objeção”
O primeiro-ministro dinamarquês Lars Lokke Rasmussen abriu a reunião na sala Arne Jacobsen. Embora fosse o anfitrião, Rasmussen não tinha experiência nas regras do diálogo no cenário internacional, e ele parecia um pouco desorientado no labirinto das políticas climáticas internacionais. Ele disse que havia sido feito um esboço de acordo que refletia as preocupações dos países participantes. “Acho que temos que nos perguntar agora se há alguma grande objeção”, disse ele em voz baixa em seu inglês imperfeito.
Com pouca confiança na voz, ele passou o microfone para um de seus conselheiros legais, que descreveu as correções de erros que haviam passado despercebidos no esboço escrito às pressas.
Quando é que, numa conferência internacional, já aconteceu algo parecido? Líderes internacionais terem de se preocupar com detalhes tão pequenos? “Acho que nunca aconteceu nada parecido, e não tenho certeza de que algo assim volte a acontecer”, diz o negociador-chefe da ONU, Yvo de Boer.
Ministros do meio ambiente e burocratas apresentaram uma pilha de 200 páginas de documentos a seus chefes, porque não tinham conseguido concordar quanto aos níveis de emissões, medidas de redução e medidas de controle. Quando os chefes de Estado e de governo chegaram na quinta-feira, ficaram chocados com o caos que seus subordinados haviam deixado para eles depois de dez dias de negociações.
“Precisamos de mais tempo”
Na noite de quinta-feira, a rainha Margrethe da Dinamarca ofereceu um jantar de gala para os líderes mundiais no prédio do parlamento. Fora do evento, o líder chinês ouviu o rumor de que o governo norte-americano havia marcado uma importante rodada de negociações sem convidá-lo pessoalmente. Wen Jiabao ficou ofendido e retirou-se para seu quarto de hotel, onde, para a irritação dos outros líderes, permaneceu durante a maior parte da conferência.
Em vez de ir, ele enviou seu negociador He Yafei para a reunião noturna com os líderes mundiais. Juntos, eles pediram para o anfitrião dinamarquês reduzir o quebra-cabeça de documentos a apenas algumas páginas essenciais. Elas ainda continham afirmações fortes, como o objetivo de uma redução de 50% das emissões globais até 2050 (em comparação aos níveis de 1990). Esse tipo de compromisso exigiria que os Estados Unidos, a China e a Índia também concordassem em cortar suas emissões de gases de efeito estufa pela metade.
Naquele ponto, Achim Steiner do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (UNEP) ainda estava contente com o possível acordo, dizendo: “Não se trata de um desastre. Ele de fato será eficiente!”
Com um sucesso dessa magnitude, os líderes europeus, especialmente Anglea Merkel, poderiam voltar para casa no Natal de cabeça erguida.
Ganhando tempo
Mas agora, na tarde de sexta-feira, o negociador chinês olhou para o documento da noite anterior e disse: “Sr. Presidente, dada a importância do documento, não queremos nos apressar... Precisamos de mais tempo.” Yafei é um dos principais diplomatas do país, um homem cosmopolita com óculos sem aro que tem um melhor domínio do inglês do que muitos dos líderes mundiais que estavam sentados à mesma mesa de negociações.
He Yafei estava ganhando tempo e constantemente pedindo interrupções, porque ele precisava conversar com seu primeiro-ministro, Wen Jiabao. Merkel aumentou a pressão, dizendo: “Então nós só precisamos ir embora.”
Ainda havia duas variáveis importantes, X e Y, no esboço do acordo. Elas marcavam os lugares onde seriam preenchidas as porcentagens de redução de emissões de gases de efeito estufa das nações industrializadas e dos países em desenvolvimento, respectivamente. “Não podemos continuar, dizer coisas bonitas, mas que esperem um ano ou mais para x e y.”, disse Merkel. A chanceler alemã estava determinada a garantir que a China e a Índia se comprometessem a participar nos esforços de proteção do clima.
Mas a China e a Índia não estavam dispostas a se comprometer. Por trás das costas dos europeus, elas aparentemente chegaram a seu próprio acordo com o Brasil e a África do Sul. “Todo o tempo nós dissemos: “não julgue as opções de antemão!”, disse um representante da delegação indiana*, fazendo com que Merkel explodisse: “Então vocês não querem se comprometer legalmente!”
Isso, por sua vez, fez com que o negociador indiano dissesse irritado: “Por que você julga as opções de antemão? Todo o tempo você disse para não pré-julgar as opções e agora você as está pré-julgando. Isso não é justo!” O negociador chinês He Yafei ficou do lado dele.
Quebra de compromisso
O primeiro-ministro britânico Gordon Brown, falando com voz forte, tentou mediar a discussão. “Acho que é importante reconhecer o que estamos tentando fazer aqui”, disse ele. “Estamos tentando cortar as emissões até 2020 e 2050. Esta é a única razão que justifica estarmos aqui. É a única razão para justificarmos o dinheiro público que está sendo gasto para isso. É a única razão que justifica a busca de um tratado.”
O primeiro-ministro norueguês Jens Stoltenberg apontou que foram os indianos que haviam proposto a inclusão de reduções concretas de emissões para os países industrializados no tratado.
Mas a Índia mudou de lado em questão de poucas horas e não estava mais interessada em sua própria proposta. Um membro não identificado do grupo ficou indignado, dizendo: “Estou surpreso que nosso amigo indiano que sugeriu a emenda pelo ministro do meio-ambiente indiano hoje de manhã não esteja mais aqui. Esta é uma quebra de compromisso.”
Merkel levou mais uma punhalada. A redução de 50% das emissões, ou seja, limitando o aquecimento global a 2 graus Celsius, era uma referência ao que está escrito no relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática). Ela então dirigiu um apelo dramático aos países que estavam tentando impedir o tratado: “Vamos supor que uma redução de 100%, ou seja, nada mais de CO2 nos países desenvolvidos. Mesmo assim, com (a meta de) dois graus, vocês teriam que reduzir as emissões de carbono nos países em desenvolvimento. Esta é a verdade.”
Recusando-se a ceder
É claro, o negociador chinês He Yafei sabia perfeitamente bem que Merkel estava certa, e foi exatamente por isso que ele não poderia concordar com sua proposta. Isso significaria que a China teria que examinar seu desenvolvimento econômico. O crescimento de dois dígitos não seria mais uma opção para a gigante asiática.
O diplomata chinês recusou-se a ceder às demandas europeias, dizendo: “Agradecemos a todos por essas sugestões. Dissemos claramente que não devemos aceitar as reduções de 50%. Não podemos aceitá-las.”
Foi nesse ponto que Sarkozy, que já estava aguentado o suficiente, acusou os chineses de hipocrisia. Como um dos presentes se recorda: “Havia uma sensação de que tínhamos chegado a um impasse, uma diferença insuperável.”
Por fim, o político disse que aquele que alega ser o homem mais poderoso do mundo logo o será apenas por causa de suas muitas armas nucleares: o presidente norte-americano Barack Obama. Nesse ponto, praticamente ninguém na sala conseguiu dar nenhuma mordida nos sanduíches de mussarela murchos que eram constantemente servidos.
Obama apunhala os europeus pelas costas
Assim como os europeus, o presidente norte-americano também tinha a intenção de garantir um acordo para proteger o clima por parte das novas superpotências econômicas, China e Índia. “Acho que é importante observar que há importantes questões a serem consideradas”, disse ele, com um tom distinto em sua voz que sugeria a visão de um estadista.
Obama lembrou seus colegas de que as nações industrializadas também dependem da boa vontade de seus cidadãos para salvar o clima. “Da perspectiva dos países desenvolvidos, mobilizar a vontade política dentro de cada país para realizarmos esforços substanciais de atenuação [da mudança climática] já é muito difícil, e, além disso, canalizar parte dos recursos de nossos países para os países em desenvolvimento, é um peso muito grande”, disse Obama. Então, falando diretamente para a China, ele acrescentou: “Se não houver uma consciência de mutualidade nesse processo, será difícil para nós seguirmos adiante de forma significativa.”
Por fim, Obama falou sobre o desdém diplomático que o primeiro-ministro chinês transmitiu com a sua ausência: “Tenho muito respeito pelos representantes chineses aqui, mas também sei que há um primeiro-ministro aqui que está tomando uma série de decisões políticas. Sei que ele está lhe dando instruções nesse momento.”
Mas daí Obama apunhalou os europeus pelas costas, dizendo que seria melhor engavetar as metas concretas de redução por enquanto. “Tentaremos dar algumas oportunidades para essa resolução fora desse contexto multilateral... E digo isso confiante de que a China ainda queira um acordo, assim como nós.”
“Outros negócios para resolver”
No final de seu pequeno discurso, que durou 3 minutos de 42 segundos, Obama até mesmo minimizou a importância da conferência climática, dizendo: “Nicolas, não vamos ficar até amanhã. Estou apenas avisando. Porque todos nós obviamente temos outros negócios extraordinariamente importantes para resolver.”
Alguns na sala ficaram nervosos. Exatamente de que lado estava Obama? Ele não poderia marcar nenhum ponto na política doméstica com a questão climática. O consenso geral era de que ele não estava disposto a assumir nenhum compromisso legal, porque este seria usado contra ele no Congresso dos EUA. Será que ele estava interessado só em sair de Copenhague parecendo apenas um estadista assertivo?
Nesse momento, havia ficado claro que Obama e os chineses estavam na verdade no mesmo barco, e que os europeus estavam prestes a naufragar.
O negociador chinês rejeitou confiante as críticas de Obama, dizendo: “Não falo por mim mesmo, mas pela China.” Então ele revidou a gafe do presidente francês, e disse: “Ouvi o presidente Sarkozy falar sobre hipocrisia. Acho que estou tentando evitar palavras como esta. Estou tentando entrar nas discussões e debater sobre a responsabilidade histórica.”
Lição de história
He Yafei decidiu dar ao grupo uma lição de história. “As pessoas tendem a esquecer de onde vêm. Nos últimos 200 anos de industrialização, os países desenvolvidos contribuíram com mais de 80% das emissões. Quem quer que tenha criado esse problema é responsável pela catástrofe que estamos enfrentando.”
Isso foi uma humilhação para a chanceler Merkel. Fotos tiradas mais tarde mostraram-na usando um blazer de seda cor-de-rosa, com o rosto parecendo cinzento e exausto. Ela tentou mostrar ao mundo uma fachada digna, falando sobre uma “nova ordem climática mundial” que havia sido atingida em Copenhague. Mas falando em particular depois da reunião, ficou claro que ela estava furiosa com o fracasso. Ela jurou para si mesma que não se arriscaria à mesma humilhação novamente. A chanceler ficou profundamente abalada com a demonstração de poder da China e da Índia, assim como com a manobra de Obama.
Ela deve ter se sentido muito sozinha naquela sala, com suas paredes cor de mostarda. E o jogo chinês ainda não havia acabado. “Tenho uma pergunta quanto aos procedimentos”, disse He Yafei. “Peço gentilmente um intervalo de alguns minutos para consulta. Precisamos de algum tempo de consulta.” O que ele queria dizer era que ele queria telefonar para seu primeiro-ministro.
“Quanto tempo?”, perguntou Merkel.
O presidente, Rasmussen, tomou a decisão. “Encontraremo-nos novamente às quatro e meia. Quarenta minutos.”
Decisões tomadas em outros lugares
Mas a reunião não foi retomada. As decisões-chave foram tomadas fora dali – sem os europeus. Os indianos haviam reservado uma sala no andar de baixo, onde o primeiro-ministro Singh se encontrou com seus colegas, o presidente brasileiro Lula e o presidente da África do Sul Jacob Zuma. Wen Jiabao também estava presente.
Pouco antes das 19h, o presidente Obama entrou no pequeno encontro aconchegante das potências em desenvolvimento.
Naquela reunião, tudo que era importante para os europeus foi retirado do esboço do acordo, em especial as metas concretas de redução de emissões. Mais tarde, os europeus – como os diplomatas de todos os outros países sem poder, que foram deixados esperando na sala de plenária – não tiveram outra escolha a não ser endossar o precário resultado.
“Muito complicado”
Existe um político que pensou bastante sobre suas experiências na sala Arne Jacobsen em dezembro de 2009: o ministro mexicano do meio ambiente Juan Elvira Quesada. Seu país será o anfitrião da próxima grande cúpula do clima em novembro.
Em Copenhague, Quesada aprendeu que o procedimento existente é ineficaz. “Quando mais de 190 países devem chegar a um consenso, é simplesmente muito complicado”, diz ele.
Na reunião de novembro em Cancun, ele diz que preferirá nem mesmo tocar no documento que foi esboçado a duras penas naquele pequeno grupo de líderes mundiais. “Se fossemos simplesmente seguir adiante com o documento de Copenhague, seria um desastre.”
Tradução: Eloise De Vylder